terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Muito além dos 10%...


ten.são
sf (lat tensione) 1 Estado ou qualidade de tenso; sf pl Sociol Termo empregado para designar as oposições internas, manifestas ou latentes em uma realidade humana.

Busquei outras formas sintéticas de expressão, mas creio que a melhor palavra para descrever o último dia 15 de fevereiro de 2009, foi essa. Nesses dois sentidos particulares.

Claro que não falo do tradicional almoço de domingo na casa dos avós, nos quais vez ou outra ocorrem algumas discussões acaloradas, sobre os mais variados assuntos. Falo, sim, do evento que me fez dormir poucas horas na noite anterior, sensibilizado por essa “tensão”, abdicar da companhia da família, da boa comida, e partir desde cedo para a quadra, no Bom Retiro, de onde a fração majoritária dos Gaviões da Fiel rumaria em direção ao Morumbi.

O clássico entre Corinthians e São Paulo, marcado pela irresponsabilidade e incongruência de atos entre diretorias das duas partes, acirrado por grande parte da imprensa da área, tinha tudo para não terminar da maneira como o esporte foi concebido.

Como todo o contexto, desde a porcentagem limitada de ingressos aos visitantes até as quatro dezenas de feridos (fisicamente) ao fim do jogo, já é sabido, e o blog se propõe à discussão e ao debate das condições vividas pelos torcedores nos estádios nacionais, vou me ater a compartilhar a minha experiência particular na “caravana dentro da própria cidade”.

É assim que alguns dos integrantes descreveram a trajetória até o “Panetonne”, “Morumbicha”, ou “Gaiola das Loucas”. A partir do meio-dia, a movimentação no ninho era grande. Em meio à montagem de um telão para os que não assistiriam ao duelo in loco, um surdo, uma caixa e um repique, com duas bandeiras em seus bambus, proibidos por lei estadual de entrarem nos estádios, já animavam o povo. Mas no ar, o clima também era condicionado por
nervosismo, temor, raiva, ânsia.... tensão, mesmo, isso sim.

Antes de todos se deslocarem aos ônibus, algumas palavras de Herbert, presidente dos Gaviões, no palco, acompanhado por algumas lideranças de bairros e das sub-sedes da organizada. Em resumo, um pedido para que a hierarquia fosse respeitada.

- “Seremos escoltados pela polícia e, no caminho, se trombar um bambi, dois, nem olhem. Não ataquem lata, rojão, pedra, não subam nos ônibus ou depedrem, porque é prejuízo para o Gaviões. E eu tenho certeza: se eles vieram em massa, vão olhar e correr”.

Eufórica, a massa do lado de cá cantava, enquanto um último anúncio fora dado: sobravam ingressos de arquibancada superior, os mais em conta, ao valor de R$ 40,00, destinados pela cúpula corinthiana exclusivamente às torcidas organizadas.

Nos ônibus, nos quais adentravam apenas os portadores do bilhete premiado, que, surpreendentemente se mostrou ofertado no fim das contas, o aguardo da saída. Eram cerca de 13h40 quando os cerca de 60 veículos, entre ônibus, vans e carros, ligaram os motores.

No trajeto, o ponto positivo, para não dizer obrigatório, de todo o ambiente: da Cristina Thomas até a Giovanni Gronchi, passando por toda a Marginal Tietê, e percorrendo ruas internas, tudo monitorado, com motos da PM paralisando algumas vias da movimentada rodovia paulistana, nenhum incidente. Em meio à “tensão”, tudo zerado até o desembarque, algumas centenas de metros antes do portão pelo qual entraríamos.

Ponto negativo número um: eram quase 15h30, quando estávamos em frente da entrada, barrada pelo policiamento. Após um inchaço da fila, a mistura com os materiais de percussão da Camisa 12, outra uniformizada corinthiana, e um empurra-empurra, aos poucos, fomos liberados para subir a rampa de acesso às... catracas. Aí vem outro grande revés da administração e da organização do jogo.

Os ingressos confeccionados eram de papel, ou material semelhante, facilmente dobrável e rasgável. Rasgável! Pois foi assim que se deu a passagem para a parte interna do Morumbi.

- “E o meu comprovante de pagamento”, questionei uma das moças que estavam desempenhando o simples ato de dar um pequeno pique no ingresso e liberando a catraca aos torcedores.

- “É o próprio papel. Pode levar”, respondeu com uma naturalidade que mancharia todas as linhas do Estatuto do Torcedor.

É isso. Um papel, que contava com um código de barras possivelmente diferente um do outro e deveria ser lido por intermédio de algum sensor óptico na catraca, fora manipulado. No sentido literal.

- “(Risos) Custou barato esse meu ingresso: Um real! Só o preço do xerox colorido!”, ironizou um torcedor, que vislumbrou as confusões e os problemas (e facilidades) que encontraria na hora, e procedeu com a cópia na véspera, no sábado.

No caminho às arquibancadas, as marcas da massa corrida corrida. A parede cimentada, levantada em cima da hora, indubitavelmente, para afastar visual e fisicamente são-paulinos dos rivais. Quanto ao estado dos banheiros e a falta (ou nulidade) de opções de alimentação, lamentavelmente, nenhuma novidade. Tudo como sempre foi nos clássicos para os que vêm de fora ao Morumbi.

Acelerando o já longo relato, e sobrepondo outras obviedades, como a ausência de cadeiras numeradas (algo que, particularmente, não me atingiu ou incomoda, por preferir assistir aos jogos em pé, independentemente da numeração apresentada no “pedaço de papel rasgado”), fim de jogo, 1 a 1, empate suado buscado pelo Corinthians. Todos embora? Sim, mas somente após a saída completa da torcida adversária, o que se deu lá pelas 18h45...

Uma linha de policiais foi formada em frente à única saída da arquibancada, inviabilizando a evacuação mais rápida e desejada pela massa. As luzes apagadas, ainda com a presença de pessoas no estádio, e o princípio de chuva, claramente, não iriam amenizar o calor com que se deu a partida. Começa mais um empurra-empurra, mas finalizado logo, com gritos e palavras de ordem. Até porque na sequência estávamos, enfim, liberados.

Passos naturalmente mais apressados e longos. Entre a confusão consumada que afetou os cerca de 40 torcedores lesionados e a primeira leva, que sentiu de perto a primeira bomba, supostamente partida do estacionamento tricolor, estava eu posicionado. Ouvi um estrondo, o voo de uma espécie de placa em direção aos carros dos frequentadores do clube, e acelerei o passo, vazando cerca de seis policiais que iam em direção à arquibancada, no contra-fluxo.

Desci a rampa escorregadia por conta da chuva, já em maior intensidade, de modo mais apressado, para deixar o local e regressar em direção aos ônibus da caravana. De lá, já fora do estádio, um outro corre-corre, com a cavalaria da PM vindo em direção dos torcedores corinthianos – a razão, óbvio, não fazia sentido ou importava naquele momento.

Só ouvi, portanto, os outros três estouros, de bomba, que ocorriam simultaneamente do lado de dentro, e que feriu aquelas pessoas. Vi, sim, o claro despreparo de muitos policiais com suas armaduras e cavalos, batendo e rebatendo o que ou quem estivesse pela frente. E vi, também, sem minimizar ou relevar a responsabilidade, a predisposição de muitos do meu lado a inflamarem ainda mais o confronto.

Presencialmente, vi poucos companheiros de camisa machucados – alguns caminhavam com dificuldade, outros com a ajuda de algum parceiro, mas nenhuma fratura explícita e emergencial. O que, claramente, acontecia naquele momento, em outros pontos.

Seguro, de dentro de um dos ônibus para a volta, muito tempo de espera e a palavra tensão, que estava apenas no imaginário e se mostrou real por instantes, voltou a causar aquela impressão de nervosismo, temor, raiva, ânsia, anteriormente substituídas.

No caminho de volta, o ok para a PM volta à tona. Mas não a possibilidade que esteve sempre iminente de haver um novo atrito, desta vez com os torcedores que vestiam camisas de organizadas são-paulinas. Nada se consumou, porém.

No fim da Marginal, já no cruzamento com a Favela do Gato, ali no Bom Retiro, a chegada dos que, entre feridos e feridos, sobreviveram. Eram aproximadamente 21h15, horas repletas de um esgotamento mais psicológico do que propriamente físico. E a mostra da percepção de uma outra realidade: inúmeras chamadas perdidas de amigos, familiares, receosos e com a visão midiática do que acontecia lá no Cícero Pompeu de Toledo e arredores.

“A cada vez que aparecia um gavião enfaixado, carregado, aqui no centro médico, imaginava que era você”, relatou uma amiga, que fazia a cobertura do derby para um site especializado do São Paulo.

50%, 40%, 30%, 20%, 10%... Falta pouco para chegarmos à estaca zero de uma temática tratada de maneira rasa, simplória, que procura um ou outro culpado e não busca compreender o fenômeno de massa em estádios como um reflexo dos acontecimentos histórico-sociais.

Me senti na obrigação profissional de fazer parte daquele momento, até por imaginar que situações parecidas pudessem ocorrer, não apenas para tentar traduzi-lo em palavras aqui. Mas para a minha formação como pessoa, apenas com a lamentação de causar TENSÃO em pessoas queridas mais próximas de mim.

Bruno Camarão é jornalista, sócio da Gaviões da Fiel e um dos integrantes do projeto Casa do Torcedor

8 comentários:

Emerson disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Emerson disse...

Ótimo texto, ô figura.

Agora escreve um do PALESTRA, e a perseguição da torcida do PALMEIRAS.

ABBRACCI

Casa do Torcedor disse...

Boa Camarão!
Foi uma vergonha o que aconteceu no Morumbi domingo, e relatos como esse precisam ser públicos. Parabéns.

Arnaldo

Anônimo disse...

Senhor Bruno Camarão,

Como já viveu essa experiência, acho que podia nos poupar de outras né?!

Apesar de eu não ter te ligado, fiquei agoniada até ter informações suas.

Se cuida!

Mesmo assim, ótimo texto!

Beijos
Karina

Anônimo disse...

Perfeito o relato!

Peço permissão para reproduzir uns trechos no Blog do Torcedor da Globo.com.

Abraços,

Yule
blogdocorinthians@globo.com

Anônimo disse...

Falei já.. mais reitero... belo texto Camis, como sempre =)

bjus

Luis Mindo

Murilo Borges disse...

Boa muleque!

Anônimo disse...

Caro, tomei a liberdade de linkar o texto no meu blogue.
Abraço.